domingo, 1 de abril de 2007

Amante da poesia de Cesário Verde!

O sentimento dum ocidental

AVE-MARIA

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba:
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma co monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam as calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erros pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim de tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hóteis da moda.

Num trem de praça aregam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, herculeas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

Gosto muito da poesia de Cesário Verde! Aquela tão realista, que descreve as coisas de forma tão minuciosa! É interessante acompanhar cada verso seu, porque muitas vezes espelha aquilo que realmente se vive na cidade e o que nós próprios muitas vezes sentimos (apesar da minha paixão por Lisboa). Até nós próprios podemos comparar os nossos sentimentos com aqueles que são demonstrados por Cesário, não só ao nível deste binómio cidade/campo, mas também pela questão da dimensão social. O poeta muitas vezes faz referência à simpatia que sente pelo povo trabalhador, quer seja urbano ou rural. É assim que neste poema, ele tanto valoriza a beleza energética de "um cardume" negro de varinas, como também os "calafates" tão "enfuscados e secos" dos arsenais.

A dimensão conotativa bastante negativa está bem patente ao longo de todo o poema, associada à "dor humana", sensação de mau-estar, monotonia!
Este espaço citadino que tanto deprime poeta, é o lugar que tanto lhe "desperta um desejo absurdo de sofrer", em que a "dor humana" se projecta.

Se eu continuasse a falar da poesia realista de Cesário Verde, estaria aqui até amanhecer. Como ainda quero ir beber um cafézito, vou ficar-me por aqui, mas com a promessa de voltar a escrever outros poemas e falar muito mais de outros aspectos da sua poesia, que eu tanto adoro!

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